A Reforma Tributária e o Terceiro Setor

As propostas que devem alterar a Constituição Federal ainda não estão totalmente aprovadas, mas as organizações sem fins lucrativos já podem celebrar uma vitória

Ainda é cedo para dimensionar o impacto das novas regras da Reforma Tributária nas organizações isentas do Terceiro Setor, bem como no setor de prestação de serviços e contribuições sociais (PIS/COFINS). Mas uma vitória já vem sendo celebrada pelas organizações da sociedade civil (OSCs): “Foi aprovada uma mudança no Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), uma das mais antigas e importantes reivindicações”, aponta Ana Carrenho, sócia da Pinheiro Carrenho Advocacia, que atua junto às OSCs na área jurídica.

O ITCMD é um imposto estadual (também chamado de ITD e ITCD) que incide sobre heranças, doações, transferências e outros tipos de transações de bens e direitos. Pelas novas regras, essa taxação não será mais aplicada quando a doação for para instituições sem fins lucrativos que tenham finalidade de interesse público e social. De tão complexo, o tema da reforma tributária está há 30 anos em discussão no Congresso Nacional. Sua aprovação afeta de maneiras diferentes vários âmbitos da economia, e o Terceiro Setor não ficou de fora dessas mudanças. Para o diretor jurídico da Federação Nacional das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas (Fenacom), Ricardo Monello, a proposta tem pontos interessantes e outros que provocam insegurança jurídica.

“A proposição reforça imunidades para as organizações que já gozam desse benefício, mas gera incertezas, por exemplo, quanto às alíquotas sobre IBS e CBS, que ainda serão definidas e que podem, sim, aumentar de maneira considerável a carga tributária das OSCs que hoje são isentas”, explica. As instituições imunes têm esse benefício assegurado pela Constituição de 1988 e não vão perder esse status. Mas há outro ponto: o fim dos benefícios fiscais, que certamente vai afetar tanto organizações isentas quanto as imunes. “Muitas instituições sobrevivem apenas com essa fonte de renda e, mesmo as imunes, como a AACD, por exemplo, também se beneficiam desse tipo de arrecadação”, afirma Monello. Segundo ele, caso não seja criado um regime de exceção para instituições sem fins lucrativos, muitas OSCs vão precisar de um plano B ou correm o risco de não sobreviver.

 “O que é lamentável, como sempre, é o desconhecimento dos legisladores acerca do que o Terceiro Setor representa na economia nacional e, o que é ainda pior, o desconhecimento acerca da imunidade concedida a essas instituições e quanto aos benefícios gerados para a sociedade”, lamenta Guilherme Reis, sócio do escritório Lima & Reis Advogados Associados. Para o especialista, sempre que há um projeto de reforma Tributária, o Terceiro Setor se vê em risco. “Discutir a relação entre a reforma tributária e o terceiro setor é imperativo! Analisar as disposições específicas da reforma e como elas podem influenciar as organizações sem fins lucrativos e suas atividades”, acrescenta o advogado.

 De fato, fica difícil entender por que um setor que reúne mais de 800 mil instituições sem fins lucrativos, representando uma parcela tão significativa da economia, não ter sido chamado para discutir as propostas. A advogada Ana Carrenho lembra ainda que o segmento responde por 4,27% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e emprega, direta e indiretamente, cerca de seis milhões de pessoas, ou 5,88% do total de postos de trabalho remunerados no país. “Não somos vistos nem percebidos”, afirma.

SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA

A primeira fase da reforma tributária foi aprovada na Câmara dos Deputados em julho e encaminhada para apreciação do Senado Federal, onde precisa ser aprovada em dois turnos por, pelo menos, três quintos dos parlamentares (49 senadores) para ser promulgada. Se o texto for alterado pelos senadores, deve voltar à Câmara para ser novamente debatido e votado.

 “É um rito alterar a Constituição Federal, por isso precisa estar bem ajustado”, explica Ana. O foco desta etapa da reforma está no consumo e altera, a partir de 2026, a forma de arrecadação de impostos, taxas e cobranças para a indústria e o setor de serviços. A fim de simplificar a contribuição sobre o consumo no país, a emenda propõe que três tributos federais — Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – deem lugar ao CBS, ou Contribuição sobre Bens e Serviços.

Prevê ainda que o Imposto Sobre Serviços (ISS), arrecadado pelos municípios, e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), de âmbito estadual, sejam aglutinados no Imposto Sobre Bens e Serviços, o IBS. O modelo proposto é o da não cumulatividade total, ou seja, todo o imposto pago ao longo das etapas da cadeia produtiva será compensado ao final.

IMPACTOS NO TERCEIRO SETOR

Monello revela preocupação com a criação de um Conselho Federativo que ficará responsável pelo recolhimento e pela distribuição do imposto sobre bens e serviços (o novo IBS) com poderes de arrecadar, normatizar, regulamentar, ter iniciativa de lei complementar, partilhar recursos entre os entes federados e devolver créditos aos contribuintes. Sob esse regime, Estados e municípios perdem a autonomia.

 “A morosidade com que os repasses de verbas são feitos pelo governo federal pode inviabilizar o trabalho das instituições. Temo como isso vá funcionar, pois todos os recursos serão concentrados e redistribuídos pelo governo federal”, argumenta o diretor da Fenacom. Para Monello, o setor de serviços, que inclui as organizações sem fins lucrativos, é o que será mais impactado pelas mudanças. “Para que a conta feche, é simples: se um setor será desonerado, outro terá de arcar com essa despesa, pois a proposta de reforma não prevê redução na arrecadação, só a sua simplificação”, explica. Para ele, o governo deveria ter começado o trabalho pela reforma administrativa. “É preciso, antes, enxugar a máquina pública, para depois redistribuir recursos”, diz.

Já na avaliação de Ana Carrenho, o Estado pode e deve ajudar o desenvolvimento das organizações do Terceiro Setor: eliminando obstáculos legais e burocráticos ou adotando medidas de apoio. “Se não temos ainda essa cultura da doação, precisamos criá-la. Em outros países, há políticas públicas mais claras para facilitar e estimular o trabalho das organizações sem fins lucrativos, até mesmo pela via tributária”, afirma. Segundo a especialista, um regime tributário que não considere o caráter sui generis das OSCs pode acarretar prejuízos na sua operação. “Daí vem a preocupação a respeito da manutenção dos regimes tributários especiais, lembrando que nem todas as organizações são imunes. Na realidade, uma maioria está sob um regime tributário de isenção e todas devem observar e cumprir as obrigações principais e acessórias, que, por vezes, se tornam obstáculos para a plena execução de suas finalidades sociais”, explica.

“As imunidades em favor do Terceiro Setor são cláusulas pétreas e não podem ser restringidas, nem mesmo por uma PEC. Portanto, em respeito a esse direito Constitucional, é de se lamentar que elas sejam restringidas”, acrescenta Guilherme Reis. Ele prevê impactos negativos para a sociedade, pela redução da oferta de serviços sociais e suas consequências para um País tão necessitado de serviços como os que o Terceiro Setor oferece.

 Neste momento, o texto da Reforma Tributária está admitindo alterações e já conta com mais de 30 emendas no Senado Federal. O relator da PEC 45/2019 apresentou o plano de trabalho para apreciação da matéria. Estão previstas realizações de audiências públicas em cinco setores de serviços, indústria, agronegócio e cooperativismo. O relatório deve ser apresentado no dia 28 de setembro deste ano para ser votado em 04 de outubro. 

(Agência Pauta Social)

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